sábado, 23 de julho de 2011

O Primeiro Aviador

No dia 23 de outubro de 1906, espectadores lotavam o campo de Bagatelle, em Paris. Toda a atenção estava voltada para um imponente aeroplano branco, com asas feitas de pipas-caixas e um crepitante motor de 50 cavalos-vapor. De pé, em um cesto entre as asas, estava um homem elegantemente vestido, já largamente conhecido de todos por suas prodigiosas façanhas aéreas em balões e dirigíveis. Alberto Santos-Dumont (1873-1932) tentava se tornar o primeiro homem do mundo a voar em avião.

Nos últimos dez anos, diversos inventores haviam tentado voos em aparelhos motorizados mais pesados que o ar: Clément Ader, em 1897; Augustus Moore Herring, em 1898; Gustave Albin Whitehead, em 1901; os irmãos Orville e Wilbur Wright, em 1903, dentre outros. Esses ensaios haviam se dado com frequência em regiões isoladas, sem a presença da imprensa ou de um grande número de espectadores. Para corroborar suas alegações, os experimentadores costumavam apresentar algumas testemunhas e documentos.

Na França, porém, desde 1904, exigia-se que, para um voo ser reconhecido e homologado, este deveria ocorrer na presença de um comitê oficial (membros de um aeroclube ou de uma federação aeronáutica) e ser de, no mínimo, 25 metros, de modo a não ser confundido com um salto. Era esse o desafio que Santos-Dumont tentava vencer naquele dia.

Nascido em Minas Gerais, em 20 de julho de 1873, ele se apaixonou pela aeronáutica ao ler, quando menino, as obras do escritor francês Júlio Verne, como Cinco semanas em um balão e Robur, o conquistador. Aos 24 anos, já independente e herdeiro de imensa fortuna, ele partiu para a França a fim de se tornar piloto profissional. Em Paris, contratou dois experientes balonistas franceses que lhe ensinaram a técnica da pilotagem de balões, Alexis Machuron e Henri Lachambre. Desde então, revelou-se um aeronauta irrefreável, ingressando em competições, quebrando recordes e projetando as próprias aeronaves.

Em 1898, Santos-Dumont surpreendeu o meio aeronáutico ao voar no menor dos balões tripuláveis já construídos, o Brazil, de apenas 118 m3, inflado a gás hidrogênio. Em 1899, com outro balão, o Amérique, de 1.700 m3, ele participou de um torneio de distância contra cinco concorrentes, ficando em terceiro lugar, após um voo de 22 horas e 325 km. E em 1901, aos 28 anos, foi aclamado o inventor do dirigível ao contornar a Torre Eiffel em um balão motorizado e ganhar o Prêmio Deutsch, de 100 mil francos (U$ 20 mil), destinado ao aeronauta que cumprisse, em qualquer tipo de aparelho aéreo, um trajeto preestabelecido de 11 km em meia hora. Seu dirigível No 6 foi considerado a primeira máquina voadora eficiente.
Desde esse voo histórico, a aerostação progrediu muito. Georges Juchmès, na França, em 1903, e o conde Ferdinand Adolf Heinrich August Graf von Zeppelin, na Alemanha, em 1904, deram novas e impressionantes demonstrações de dirigibilidade aérea em gigantescos balões motorizados. Mas, até 1906, ninguém havia feito um voo público em avião.

A decolagem era o maior obstáculo: sabia-se que, para manter em voo uma máquina mais pesada que o ar, bastava a sustentação ser igual ao peso, mas para decolar era preciso gerar uma força ascensional maior que o peso, o que requeria certa potência. O desenvolvimento de motores leves, contudo, ainda estava sendo equacionado pela indústria. Os partidários da aviação buscavam, assim, formas alternativas para lançar seus aparelhos no ar.

No século XIX, inventores já haviam tentado se jogar de certa altura agarrados a planadores, descer declives a bordo de aeronaves motorizadas para ganhar velocidade e decolar, ou aproveitar ventos fortes para aumentar a sustentação das máquinas. Mas ninguém fora capaz de fazer um avião sair do chão sem a ajuda de ventos, rampas, catapultas ou outros engenhos.

Meses antes, no mesmo campo de Bagatelle onde agora se apresentava, o próprio Santos-Dumont havia se valido de recurso semelhante: experimentara uma máquina mista, o 14-bis, um avião unido a um balão de hidrogênio. O balão facilitava a decolagem, empinando a parte dianteira do aeroplano e reduzindo seu peso efetivo. Com esse híbrido, o inventor pretendia disputar dois prêmios: o Archdeacon, para quem voasse 25 metros, e o do Aeroclube de França (100 metros). Ambos deixavam em aberto a questão da decolagem e permitiam alto grau de desnivelamento do solo. Aeroplanos sem motor, como planadores e ornitópteros movidos a força muscular, também podiam concorrer.

Assim, uma vitória nesses prêmios não equivaleria, necessariamente, à invenção do avião. Havia ainda o prêmio Deutsch-Archdeacon, para quem fizesse um voo ida e volta de 1.000 metros, mas este não admitia balão para a sustentação. As únicas exigências comuns aos três prêmios eram que a máquina fosse mais pesada que o ar e que o voo ocorresse na França, diante de uma comissão julgadora.

Sendo um veículo ligeiramente mais pesado que o ar, o 14-bis estava qualificado para ingressar nas competições, exceto no Prêmio Deutsch-Archdeacon, por utilizar um balão. Os testes que procedeu ao ar livre no dia 19 de julho de 1906 foram, no entanto, criticados por um dos mais ilustres membros de Aeroclube de França, o capitão Ferdinand Ferber, que considerava o híbrido uma máquina impura. “A aviação deve ser resolvida pela aviação!”, declarou.

Santos-Dumont ouviu a crítica. Retirou o balão e compensou o aumento de peso instalando um motor mais potente. A aeronave recebeu da imprensa o nome de Oiseau de Proie (Ave de Rapina). Mas agora outro forte candidato estava na disputa: o romeno Traian Vuia (1872-1950).
Em março de 1906, com um monoplano dotado de um motor de 20cv, ele havia conseguido subir a 2,5 metros de altura e avançado no ar por 24 metros. Houvesse Vuia percorrido apenas mais 1 metro, o salto teria se transformado em voo.

Vuia estava perigosamente próximo de ganhar o Prêmio Archdeacon, e Santos-Dumont sabia disso. O brasileiro não perdeu tempo. No dia 13 de setembro, em Bagatelle, tentou o prêmio duas vezes: na primeira não decolou e na segunda saltou somente 8 metros.

No mês seguinte, o inventor mandou envernizar a seda que entelava as asas para diminuir a porosidade do tecido e aumentar a sustentação. Também retirou a roda traseira, que percebeu atrapalhar a decolagem. Foi com essas modificações que o Oiseau de Proie II voltou para Bagatelle.

Durante a manhã daquele dia 23 de outubro, Santos-Dumont limitou-se a rodar com o aeroplano pela relva. Num dos ensaios, o eixo da hélice se quebrou e só à tarde foi consertado, quando o experimentador subiu no aparelho para uma tentativa oficial.

O motor foi ligado e aquecido. Uma multidão estava presente. Às 16h45min, o Oiseau de Proie II pôs-se em marcha, ganhando velocidade rapidamente. Para espanto de todos, após correr cerca de 100 metros, o biplano decolou de primeira. O grande pássaro mecânico progrediu suavemente na atmosfera, subiu a 3 metros de altura, percorreu 60 metros no ar e voltou ao solo. Os espectadores, em delírio, invadiram o terreno e ergueram nos ombros o aviador que nascia. Eles haviam acabado de contemplar o primeiro voo completo da aviação.

Infelizmente, os juízes, também emocionados com a cena, se esqueceram de cronometrar e acompanhar o voo, e devido à falha o recorde não pôde ser homologado. Todas as medidas (altura, distância, tempo) tiveram de ser estimadas, mas a comissão, certa de que a distância mínima de 25 metros fora coberta, declarou Santos-Dumont o ganhador do Prêmio Archdeacon.

Embora para o prêmio não fosse obrigatório o aparelho decolar por meios próprios, o fato não passou despercebido. O jornal Fígaro de 24 de outubro de 1906, destacou: “Santos Dumont é, com efeito, o primeiro que, devidamente fiscalizado, conseguiu, com os únicos recursos de seu aeroplano, deixar o solo e voar.” A revista #La Nature#, de 3 de novembro, endossou: “Santos-Dumont demonstrou de forma indiscutível que é possível se elevar do solo pelos próprios meios e se manter no ar”.
No dia 12 de novembro, o brasileiro voltou a Bagatelle, para concorrer ao Prêmio do Aeroclube da França. Havia inserido entre as asas do Oiseau de Proie II duas superfícies octogonais conectadas por cabos às costas do seu paletó. Com isso, inclinando o corpo, podia regular o equilíbrio da aeronave, transformada agora no Oiseau de Proie III.

Santos-Dumont fez seis voos públicos nesse dia, os cinco primeiros cobrindo distâncias entre 40 e 83 metros: às 16h45min, com o dia já terminando, partiu contra o vento. Favorecido por uma ligeira inclinação, o avião alçou voo quase imediatamente. Para evitar a multidão, Santos Dumont subiu mais, atingindo 6 metros de altura. Com enorme sangue-frio e habilidade, esboçou uma curva para a direita, cortou a ignição e foi ao solo. A asa direita tocou o chão antes das rodas e sofreu pequenas avarias, mas ninguém, incluído o piloto, se feriu. O percurso aéreo, medido com exatidão, foi de 220 metros em 21,2 segundos. O Prêmio do Aeroclube da França estava ganho. Esses foram os primeiros voos de avião registrados por uma companhia cinematográfica, a Pathé.

Os outros inventores que acompanharam as provas perceberam que, com o acionamento do leme profundor durante a corrida de decolagem, o Oiseau de Proie III empinava e parte da tração passava a contribuir para a sustentação. Era graças a essa força que o aparelho deixava o solo. Devido a essa observação, no ano seguinte, vários pilotos deslancharam seus primeiros voos: Gabriel Voisin, Louis Blériot e Henri Farman, que voou 771 metros.

A aviação progredia, com voos mais longos, mais altos e mais velozes. Enquanto isso, os irmãos Wright reclamavam ter sido os primeiros a voar. Em 7 de novembro de 1907, em uma sessão do Aeroclube da França motivada pelo voo de Farman, Ernest Archdeacon proferiu um discurso irônico: “Os famosos irmãos Wright podem, hoje, reivindicar tudo o que quiserem. Se é verdade (o que eu duvido mais e mais) que eles foram os primeiros nos ares, eles não terão a glória desse feito perante a História. Eles tinham apenas que abandonar os seus mistérios incompreensíveis e fazer os seus experimentos em plena luz do dia, como Santos-Dumont e Farman, diante de controladores oficiais, cercados por milhares de espectadores.”
Poucos meses depois, Wilbur Wright decidiu apresentar-se na França. Explicava que não o fizera antes porque estava aguardando a concessão pelos Estados Unidos da patente da sua invenção, expedida em 1906, e também porque só recentemente havia fechado um contrato com um empresário francês para a venda dos seus aparelhos. Enquanto isso, Orville ficara nos Estados Unidos para fazer demonstrações perante o exército do seu país.

A demonstração na França foi marcada para 8 de agosto de 1908, no Hipódromo de Hunaudières, em Le Mans. Na data prevista, armou-se sobre o solo um monotrilho de 24 metros de comprimento e, em uma das extremidades, um pilão de 6 metros de altura, no qual foram içados discos de bronze com uma massa total de cerca de 700 kg. Esses pesos foram ligados por um cabo a um carrinho disposto sobre o trilho, em cima do qual repousava o aeroplano.

Wilbur ligou o motor. Em seguida, acionou o sistema que provocava a queda dos discos. O carrinho com o aeroplano foi rapidamente puxado para a frente, conferindo à máquina em poucos segundos a velocidade necessária para decolar.

Cerca de 100 pessoas estavam presentes. Um dos espectadores era o francês François Peyrey, autor do livro Les oiseaux artificiels, de 1909, no qual escreveu: “O aeroplano nem sequer atingiu a extremidade do trilho e pôs-se em voo, imerso no céu azul. Imediatamente descreveu uma meia-volta, atingindo 10 metros de altura. O espetáculo era prodigioso e charmoso. Nas tribunas, onde estavam as testemunhas da proeza, uma aclamação imensa ressoou, e após 1min45 de evoluções, Wilbur Wright voltou ao solo com uma destreza inconcebível. Todas as mãos o aplaudiram”.
Nos Estados Unidos, Orville também causava sensação: em 11 de setembro de 1908 ele estabeleceu um recorde de permanência no ar de 1h10min24s. E, na França, outras notáveis exibições de Wilbur se seguiram, estabelecendo recordes mundiais. Ficou evidente que os Wright eram pilotos experientes e que já deviam estar praticando o voo motorizado havia anos. Quando eles forneceram à imprensa fotografias dos voos feitos por eles em anos anteriores e relatórios pormenorizados das suas experiências, suas reivindicações foram enfim aceitas e eles, considerados os inventores do avião.

Os Wright, em 1903 e até 1905, foram os primeiros a fazer voos em máquinas mais pesadas que o ar com motor a gasolina, embora se valessem sempre de algum artifício para decolar (ventos contrários, catapultas ou declives). Cabe a eles a invenção do motoplanador. Santos-Dumont, em 1906, foi o primeiro a fazer voos sem nenhum auxílio externo em um aparelho mais pesado com motor. Cabe a ele a invenção do avião.

Em 1914 teve início a Primeira Guerra Mundial, e Santos-Dumont, desgostoso por ver o avião transformado em hedionda arma mortífera, se retirou definitivamente do campo de provas. Também ficava cada vez mais magoado com a aceitação geral dos Wright como pioneiros da aviação. Era o início de uma grave depressão que mudaria profundamente o caráter desse aviador excepcional e o assombraria pelo resto de sua existência.

Fonte: Rodrigo Moura Visoni é segundo-tenente arquivista do Quadro Complementar da Aeronáutica
Cortesia: Amigo Ronaldo R. dos Santos



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